por Denise Alves-Rodrigues

O diário de uma vida

(lendas caipiras)

Lobisomem

 

Quaresma de 1982 e eu tinha um pouquinho mais de um ano e não era batizada.  Nós (avós, pais, irmão mais velho e duas tias e um tio) morávamos em Dourados – MS.

 

Minha vozinha repetia pro meu tio Celso todos os dias, não vai na zona Celsinho estamos na quaresma nada de festa, meu tio não acreditava e ia.

 

Numa noite todos dormiam quando meu tio chegou gritando, arregaçando a porta e meu avô ajudou ele que estava chorando e com a camisa rasgada e gritando que tinha um bicho maior que um cavalo correndo atrás dele desde o campinho. Meu tio Celso voltava pra casa quando viu uma coisa no escuro e tacou uma pedra, lá da moita do campinho levantou um lobisomem e correu atrás do meu tio Celso até a nossa casa.

 

Todos acordaram com meu tio Celso escandaloso e e no meio da sala, conseguiram ouvir que lá fora uma coisa estava contornando correndo a casa e para piorar tudo os cachorros não latiam, ganiam.

Meu avô e meu pai pegaram espingarda revólver e foram pra janela tentar matar o bicho, minha avozinha dizia que não adiantava pq lobisomem comia criança pagã e todos estavam revoltados pq meu tio era um burro que tinha levado o bicho pra casa.

 

Ouviam o bicho subindo no telhado.

 

Todo mundo apavorado pq era uma casa sem laje e o bicho ia começar a destelhar. Minha mãe socou meu irmão e eu no guarda roupa e minha avozinha mandou todo mundo calar a boca e gritou bem alto: Vem amanhã de dia que te dou um punhado de sal!

 

Tudo ficou calmo e  no outro dia do lado de fora o colonhão do quintal estava todo baixado a porta arranhada e os cachorros todos com rabinho entre as pernas.

 

Ninguém apareceu para buscar o sal.

 

Minha família voltou para Araçatuba.

 

Fui batizada só em outubro de 1982, quando meu avô me contou tudo isso lá nos fim do anos 90, falou rindo que até preferia encarar outro lobisomem, mas que já bastava eu ter nascida lá na maloca e não ia admitir selar minha vida com Deus fora de São Paulo, né? Aí sim eu fui entender pq ele sempre fechava o cenho quando meu pai ou alguém me chamava pelo meu apelido de infância: Bugra.

Como azedar a carne

 

Todas as férias a gente passava no rancho do Pantanal ou na fazenda Esperança, as propriedades do patrão do meu pai.

 

Daí que um dia na fazenda um boi se engarranchou na cerca e meu pai e os outros peões foram lá desatar o boi. O boi tava muito machucado e o patrão já tinha dito que se não dava pra soltar direito que matasse e dividisse a carne entre os peões.

 

Vi o boi e fui logo falando QUE DÓ DO BOI! Meu pai me deu um croque na cabeça e disse FILHA DA PUTA VOCÊ AZEDOU A CARNE!

 

Todos os peões ficaram me olhando muito bravos e ficavam cochichando que burra que desgraça que eu era que não sabia das coisas.

 

Tive q arrastar a cabeça do boi até o açude, um tio me ajudou e depois na caçamba da caminhonete me perguntou se eu tinha aprendido que a gente não pode ter dó do que mata.

Como virar lobisomem

 

Minha mãe conta que pra virar lobisomem, um homem na noite de lua cheia (porque só homem pode virar lobisomem, ela frisa isso) tem que ir até um campinho ou terreno baldio onde fica pastando e vivendo um jumento, esperar anoitecer e quando a lua tiver lá na ponta da cabeça do céu, o homem tem que tirar o jumento do lugar onde ele estava dormindo, deitar nesse lugar, colocar as roupas do avesso e ficar se esfregando nesse lugar debaixo da lua até virar lobisomem.

Vick Valsy

 

A gente morava na beira da rodovia Rondon, de um lado da nossa casa tinha um terrenão baldio e do outro a casa do tio Luizão. O tio Luizão era solteiro, vivia na sua casa que também era a mecânica de caminhão, no fundo ele tinha um quintal grande demais onde ficava um monte de caveira de caminhão parada lá. A gente se escondia às vezes nas sucatas para brincar e meu pai a noite puxava o braço do meu irmão dizendo pra não ir lá, que o menino dele não podia ir lá.

 

Daí que no meio do ano teve uma quermesse e minha mãe me deixou ir sozinha. Ela me vestiu e brigamos muito porque ela me botou saia e não dá dava para brincar com roupa de mulher.

 

Cheguei na quermesse e tive que ficar parada na frente do palquinho enquanto olhava os moleques subirem o pau de sebo e pegar a prenda. Daí, fui buscar numa das barracas goiabinhas com melaço e voltei pro palquinho e o homem de apresentar as apresentações da noite falou bem alto, agora com vocês o maior cover do Ney Matogrosso da região de Araçatuba: Vi-ck-Val-syyyyyy!

 

Quase morri porque entrou no palquinho o tio Luizão vestido de Ney Matogrosso! Ele requebrava com uma saia toda de bolinhas de colar de macumba e fingia cantar no microfone de mentira e aí eu engasguei com a goiabinha no meio do show cover e o tio Luizão foi me ajudar e me puxou pro palquinho e minha saia prendeu na borda alí e fiquei engasgada e com a saia caindo. Mas o tio Luizão me levou pro canto e me bateu nas costas e ele me desengasgou e falou pra eu ficar quietinha alí na caixa de som. Ele voltou a fingir cantar e requebrava e rebolava e era tão bonito e quando a luz pegava nas bolinhas da saia viravam espelhinhos e o capacete de Ney Matogrosso que ele usava parecia coisa de televisão. As pessoas na frente começaram a gritar com ele e chamar de veado e mostrar o dedo e ele continuou o show porque era um artista e eu fiquei imaginando que aquela gente era como eu e que todo mundo gostava mais do Dumbo.

 

O tio Luizão me levou embora depois do show, da quermesse até a porta da minha casa ele não largou minha mão, antes de atravessar a Rondon ele disse que a gente só podia atravessar as coisas de mãos dadas e no outro dia eu ainda tinha purpurina na mão.

 

Não me lembro quanto tempo passou e ouvi meu irmão contando pros moleques que o Tio Luizão tava no meio das caveiras de caminhão e o tio Adilso Marceneiro pegou a mão dele e botou em cima do pacote e aí eles gostaram e depois eles brigaram. Mas eu lembro que era quase no final de setembro, por que o Zé Bill falava na rádio bem de manhãzinha, que a primavera trazia boas novas, foi quando eu tava na cozinha ouvindo o radio e escutei as pessoas na sala que não entendiam o porquê o tio Luizão tinha deitado na pista pro caminhão passar em cima dele.

 

Tinha gente que falava que a Rondon tava cheia de sangue e brilhinhos e miolos. Fizeram um pontilhão pra gente passar por cima da rodovia. Vick Valsy virou uma lenda urbana do bairro, tem gente que depois da meia noite jura q vê ele dançando na beira da pista.

Dona Joaninha e o Galo

 

Quando a gente morava no Icaraí, tínhamos uma vizinha chamada Dona Joaninha que tinha dois filhos, o Pedro e o Tatá. O Pedro era um cara legal, sua esposa Roseli era amante do meu pai, todo mundo sabia e o Pedro e minha mãe sempre ficavam meio chateados no churrasco de domingo quando meu pai falava que ia buscar mais 51 no bar e a Roseli falava que precisava de uma coisa na casa dela.

 

O Pedro trabalhava numa construtora nos anos 80 que enviou ele pra trabalhar no Iraque. Pedro ligava pra Dona Joaninha uma vez por semana, ela contava pra Roseli, que contava pra minha mãe sobre seu marido no Iraque trabalhando e ganhando muito dinheiro. Minha mãe ria e lembrava quando o Pedro teve uma convulsão em um churrasco porque comeu 14 ovos cozidos.

 

Dona Joaninha parou de receber ligações do Pedro, Roseli não se importava e dizia que ele devia estar zoando no Iraque, passaram muitos dias e numa manhã Dona Joaninha estava passando café e escuta batidas na porta dos fundos, ela achou estranho porque no quintal só tinha bicho e planta e o portão que dava pra rua não tinha sido destrancado ainda e todo mundo sabia que ladrão não batia na porta. Mais três batidas. Ela deixou o café descendo pra garrafa e enxugou as mãos na saia e abriu a porta, nenhuma pessoa na porta, só o galo do quintal peito vermelho e preto, que olhou pra ela e falou com voz de homem: “Teu filho está morto!”

 

Não lembro quanto tempo a construtora demorou pra ir comunicar a morte do Pedro, ele sofreu um acidente fatal trabalhando. A Dona Joaninha ficou estranha, passou a usar palha de aço nos copos e deixa-los bem fininhos para comer, a Roseli contou isso pra minha mãe. Meu pai terminou com a Roseli porque ter duas mulheres era fácil mas cinco filhos não, ele disse rindo pro tio Carlinho. O galo viveu um tempão, ele ficava em cima do telhado, no muro, no terreno baldio, ciscando filho da puta e egoísta porque olhava pra gente sabendo de um monte de coisa e só falou uma vez e foi desgraça.

So(m)brancelha

 

Quando eu tinha uns dez anos acordei no meio da noite e raspei minhas sobrancelhas pela metade e voltei a dormir.

 

Quando acordei e fui tomar café minha mãe perguntou quem tinha feito aquilo comigo e eu botei  a culpa no meu irmão Douglas, ela disse que o Douglas nunca faria aquilo, daí chorei e botei a culpa no meu amigo imaginário que todo mundo jurava que era uma assombração (havia indícios que nossa casa era amaldiçoada pq tudo dava errado com a gente e os vizinhos falavam que não era nossa culpa e sim do Mal), minha mãe me bateu com a espada de são jorge  e passei uns meses tendo que inventar mais estórias na rua, tentando justificar as sobrancelhas parciais ou tentando escondê-las.

Gente com rabo e chifre

 

Minha mãe pedia sempre durante a quaresma: "meus filhos, se vocês passarem na frente de uma casa ou festa, nunca olhe pra dentro dessa casa!".

Eu ouvia e ficava com medo e com umas dúvidas.

Minha mãe falava que durante a quaresma se você fizesse festa, com dança e bebidas e paqueras, nascia lá um rabo e chifre em você. Que ficava que nem o Diabo.

Churrasco no domingo podia.

Minha avó chancelava minha mãe, contava que quando ela era moça em Cafelândia, tinha espiado uma casa que foi desrespeitosa na quaresma e que era um horror lá dentro aquela gente (tinha até vizinho!) que preferia ter rabo chifre, que ficar quieto em casa.

Ano passado minha avó morreu e nunca me respondeu se ela conseguiu ver se o rabo vinha do cu ou do rego das pessoas.