review
junho de 2017, documenta 14
Kassel, Alemanha e Atenas, Grécia
Visão a partir da Acrópole
Atenas, Grécia, 2017
Visão a partir do Grimmwelt Kassel
Kassel, Alemanha, 2017
O calor desses últimos dias fizeram com que parte do meu corpo ficasse inoperante: pressão sem regulação e audição prejudicada. Ouço pouco. Me equilibro de forma precária devido ao problema no ouvido esquerdo. Em alguns casos fico tonto e desmaio. "O senhor está bem?", alguém deve ter perguntado em alemão. Em algumas situações, muito facilmente, eu fico tonta e posso desmaiar. Seria o calor insuportável que sufocava a todos nós neste verão europeu? Seria o quase infinito volume de documentos, legendas, papéis, toda sorte de textos que se colocavam diante de nós em línguas estrangeiras? Um cansaço para aqueles que têm o português como língua materna. E embora já muito acostumados com temperaturas elevadas, não resistimos.
Ben Russell
Black and White Trypps Number Three, 2007
https://www.documenta14.de/en/artists/8548/ben-russell
O show estava prestes a começar. Podíamos sentir a sala climatizada. No calor dos 38ºC, era sabido, agora na cidade de Atenas, que quando determinada temperatura é atingida, o corpo paralisa. A platéia estava lotada e não havia como arriscar qualquer movimento sem automaticamente afetar quem estivesse ao redor. Uma espécie de corpo coletivo que entraria em transe à medida que o ritmo da música evoluísse. O corpo mole de um desmaio seria moldado pela multidão ao amortecer a queda e haveria três opções nesse caso: 1. segurar a cabeça para que ela não colida com o solo; 2. erguer o corpo em um movimento abrupto para que ele se recomponha durante o ato; 3. carregar o corpo cambaleante em cena: mão-pé, ombro-axila, braço-costas, braço-pernas. Ocupávamos uma sala climatizada de um conservatório de música na cidade de Atenas ao mesmo tempo em que ocupávamos uma casa de shows em alguma cidade dos Estados Unidos.
Onze minutos e trinta e cinco segundos é o tempo que o atual recordista mundial de apneia estática (uma das diversas modalidades existentes) conseguiu ficar sem respirar embaixo d'água. Esse fôlego parece extra-humano. Diversos outros competidores tentam tal façanha, alguns sequer retornam à superfície depois que mergulham a 300 metros de profundidade. Me parece tão distante para um ser humano esse alcance, que os mais de 8 mil metros de profundidade que separam mergulhadores de seres abissais, talvez possam ser acessados por um profissional nas próximas décadas. Algo comum entre os praticantes da apneia desportiva é o desmaio constante, chegando a ser relatado 3 apagões em uma mesma tentativa de mergulho. O esporte, mesmo que aparentemente solitário, nunca deve ser feito sem o outro, sem o suporte e acompanhamento durante a travessia às profundezas. O fôlego para um não competidor pode ser treinado enchendo bexigas ou esfriando uma sopa quente.
Há quem diga que, das experiências intensas e hipnóticas, do estado de alucinação e do total descolamento da realidade, surja a indiferença. Das cores ou sons vibrantes, o silêncio total de um antigo apartamento desabitado. A paleta de cores em tons pastéis, o tédio dos engravatados, a atmosfera previsível dos espaços domésticos. Daí então vem a apatia, o não-se-importar… Havíamos sido alertados: ligar o aquecedor 15 minutos antes de tomar banho e desligar 15 minutos depois. Um ritual que se tornaria automático a medida em que fazíamos daquele espaço o nosso lar. Foi no terceiro dia que, ao retornar de mais uma jornada de trabalho, enfastiados, notamos o aquecedor ligado, muito provavelmente desde às 10h da manhã. Descuido, amnésia, cansaço. O aquecedor de água permaneceu ligado por 12 horas, impossibilitando qualquer tipo de banho por mais 12.
Lorenza Böttner
Desenhos em grafite, desenhos em pastel, pinturas, vídeo e materiais de arquivo, 1975–1994
Imaginemos uma situação: um bebê. Ele chora, chora, chora. Você não sabe o motivo, mas pode imaginar alguns: fome, dor, tédio, sono, tristeza… Você se desespera, porque sabe que algo está acontecendo, mas não sabe exatamente o quê. O tempo passa e o bebê aos poucos muda de cor - vermelho, roxo, azul -, você tenta acalmá-lo e nada adianta. Esse choro contorce o corpo, é essa a linguagem possível. Ao ninar o bebê, ao balançá-lo, o que pretende-se é atordoar a criança
Outros roteiros podem ser seguidos: posso pegar uma faca e cortar a minha própria mão. Mesmo sem ela, sinto a sua presença. Esse membro-fantasma performa a dinâmica cotidiana: ele pode atravessar objetos, paredes e outros corpos. É possível levantar da cama de forma abrupta e se esquecer dos membros inexistentes. Esse membro-fantasma também pode ser sentido de forma duplicada em pacientes tetraplégicos: braços e pernas se tornam duplos e realizam funções outras - inclusive movimentos não requisitados - como as mãos que podem apertar o próprio pescoço e causar a obstrução de ar. Parece existir um outro dentro do próprio corpo.
Museu Arqueológico de Piraeus
Atenas, Grécia, 2017
Se quiser, pode colocar a mão, o braço e todos os outros membros por entre peças arqueológicas: uma exposição cabe por completo dentro de um corpo. O idioma do gesto é a linguagem universal por excelência. Se quiser, pode dar bom dia, pedir um favor, agradecer, fazer um elogio e despedir-se sem usar nenhuma palavra. Uma intenção cabe por completo dentro de um corpo.
Collective Exhibition for a Single Body (Pierre Bal-Blanc)
Atenas, Grécia, 2017
https://www.documenta14.de/en/venues/15247/archaeological-museum-of-piraeus
Foi um tipo de visita guiada pelo museu, que podia também ser uma coreografia, também uma exposição de trabalhos traduzidos pelos corpos dos bailarinos, também aparições ou surtos, exercícios e provocações. Repara bem e vê: o que é da estatuária grega? Elas ali faziam o seu papel de vigia, às vezes até participavam - quando convocadas -, mas permaneciam quietas na maior parte do tempo. E conseguíamos sentir o peso de sua tradição, das regras, mas também da matéria: um mármore que nem branco mais era. Os bailarinos, que pareciam já muito à vontade com todas elas, seguiam, determinados, as indicações das partituras, desmantelando aos poucos um corpo que até então só se reconhecia ereto, “humano”. Que anatomia universal seria essa?
Grécia: espinha dorsal. Escavaram bem fundo para reconhecerem, de imediato, a mesma imagem. Um passado remoto que, de distância, só o tempo, pois é ele mesmo a origem. Do lado de cá da platéia, nós dois encostados no corrimão da escada, desajeitados, escaldados do sol, tentando entender o Norte pensando o Sul. Ou de dizer o que é Sul e quem é mais Sul que o próprio Sul. Se o Sul é um estado de espírito, ele então deve habitar em algo próximo: marimba, tigre, azeitona, floresta, calor, assombração, alimento, política, dança, pedra, gato, ouvido, lembrança.
Visão a partir do Museu Nacional de Arte Contemporânea
Atenas, Grécia, 2017
Visão do Mar Egeu
Grécia, 2017
Largada da corrida SNF RUN: Running into the Future
Atenas, Grécia, 2017
No dia 23 de Junho, pelas ruas de Atenas, cerca de 4.500 pessoas corriam para o futuro. O lema da corrida organizada em celebração ao "Dia Olímpico" estampava camisetas, faixas e placas de sinalização por todo o trajeto: Running into the Future. Todos partiram do Estádio Panatenaico em direção ao Centro Cultural Stavros Niarchos. Entre esses pontos de partida e chegada há, talvez, uma alegoria da atual situação grega. O Estádio Panatenaico, símbolo dos jogos olímpicos modernos, carrega consigo a tradição e as disputas de 1896 e 2004, já o Centro Cultural teve seu projeto de construção iniciado em 2008, sob responsabilidade do escritório de arquitetura de Renzo Piano e com aporte de cerca de 600 milhões de euros do fundo privado da Fundação Stavros Niarchos. No site da fundação é possível encontrar algo como: “…é um compromisso com o futuro do país”. Hoje o complexo do centro cultural é administrado pelo poder público. O trajeto desenhado pela corrida ainda incluía passagens pelos museus Bizantino e Cristão - onde se ouviam vozes e o coaxar dos sapos; Conservatório de Atenas (Odeion) - outros sons que hoje se tornaram melancólicos; Museu Nacional de Arte Contemporânea - onde se ouvia falar sobre os vidros super-resistentes produzidos pela Oran Safety Glass e dos poemas de Else Lasker-Schüler.
Yael Davids
A Reading That Loves—A Physical Act., 2017
Nairy Baghramian
Drawing Table - Homage to Jane Bowles, 2017
https://www.documenta14.de/en/artists/13485/nairy-baghramian
Nairy Baghramian
Drawing Table - Homage to Jane Bowles, 2017
https://www.documenta14.de/en/artists/13485/nairy-baghramian
Deserto como zona livre. Assim poderiam pensar alguns homens, fartos do peso histórico e político de seus países, atordoados pelo processo ininterrupto de modernização e descaracterização do que seria “original” ou “originário”. De suas torres nas cidades, discutem sobre as possibilidades da desaceleração do tempo, mas censurados pela ordem do capital e do progresso, atuam pouco em seus contextos e vão em busca de outros territórios que ainda não tenham sofrido o impacto da alta tecnologia. Assim pode ter sido na década de 1950, quanto intelectuais norte-americanos partiam para o Marrocos em busca de um contato mais genuíno com o que seria uma vida “mais humana”. A mesa de ferro que um dia mediou um diálogo entre duas dessas figuras - uma mulher e um homem - e até mesmo o diálogo em si, junto com a arquitetura do pátio onde estavam, sua frustração ao ver locais vestindo não roupas tradicionais, mas ocidentais e o clima seco do deserto marroquino, puderam ser acessados em 2017, nas cidades de Kassel e Atenas. O portal que nos dava acesso a esse diálogo de outros tempos era estruturado em peças de madeira encerada, metal pintado, corda, lona, vidro soprado, poliuretano e ilhós de metal, e possuía, na verdade, duas versões de si mesmo. A primeira, de 2002, estava instalada em um museu da cidade de Kassel que foi reaberto em 2016 com o objetivo de dedicar-se à questões da identidade regional. Já em Atenas, uma versão de 2017, um rascunho tridimensional da versão de 2002, uma versão, portanto, anterior à primeira versão - que agora deixa de ser primeira, ou original -, mas que nasceu bem depois. Cronologia reversa que é já própria da natureza dos portais. Mais ainda quando o que se alcança através deles é uma conversa sobre um desejo de passado, de dinâmicas “originárias” ou “originais”, virgens, intocadas, e que nos permite pensar, afinal, que dinâmicas seriam essas. Atenas ocupa uma região muito árida, mas deserto não chega a ser. Fora isso, mantém o registro da antiguidade, do início de tudo. As ruínas ressoam imponentes demais no imaginário coletivo, naturalmente, bem mais num coletivo externo, estrangeiro à cidade e ao país. Todo o resto se apaga, as vias expressas de alta velocidade, as calçadas estreitas, as mega construções, os shopping centers e as marcas de grife europeia, tudo isso se desmancha diante do olhar encantado daquele que é estranho ao lugar.
Visão a partir do Museu Nacional de Arte Contemporânea
Atenas, Grécia, 2017
Arseny Avraamov
Documentação e reconstrução da Symphony of Sirens, ca. 1922
Arseny Avraamov
Documentação e reconstrução da Symphony of Sirens, ca. 1922
Esse texto faz referência aos artistas e projetos: Nairy Baghramian, Lorenza Böttner, Arseny Avraamov, Vivian Suter, Yael Davids, Apostolos Georgiou, Lala Rukh, Benjamin Patterson, Prinz Gholam, Ben Russell, Georgia Saggri, Artur Żmijewski, Collective Exhibition for a Single Body: Pierre Bal-Blanc, Kostas Tsioukas, Myrto Kontoni, Tassos Koukoutas, Kostas Tsioukas.